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terça-feira, 4 de outubro de 2016

O panteísmo estóico

O estoicismo foi uma escola fundada por Zenão de Cício, por volta do século IV a.C, em Atenas, durante o período da história que se chama helenismo. O helenismo é o período em que a cultura grega, após as conquistas de Alexandre, sofre um sincretismo com várias outras culturas - como a egípcia, a persa e a romana -, e se torna, portanto, a cultura dominante do mediterrâneo até a Índia. Esse período perdura até a conquista romana da península dos Bálcãs, em 146 a.C.

O grego, então, se torna a principal língua falada no mundo, e algumas cidades se tornam centros de debates intelectuais, como Atenas, Pérgamo e Alexandria. Por conseguinte, as reuniões com os ensinamentos de Zenão eram realizadas em Atenas, na antiga na stoa, um pórtico, localizado ao norte da ágora, um dos centros do debate intelectual da época. O nome da filosofia estoica é, assim, o nome do lugar onde os encontros eram realizados.

O estoicismo é uma das filosofias antigas, junto com o Cinismo e o Ceticismo, que chega ao presente não só como uma corrente filosófica, mas também como um adjetivo. Quem é atribuído com o adjetivo de estoico é considerado austero; impassível diante da adversidade e dos infortúnios da vida e que se destaca pela qualidade de sua ação; pela firmeza moral; por seu caráter incorruptível; força diante dos reveses da vida. Mas o estoicismo não é somente limitado às suas caricaturas, que foram construídas durante séculos de interpretações, principalmente de Cícero, Sexto Empírico e Plutarco – importantes doxógrafos do início do império romano, que, por sua vez, também influenciaram as interpretações cristãs e sua assimilação ao cristianismo. Nessa chave de interpretação, o estoico é retratado como um sábio impassível e indiferente, e a filosofia do Pórtico, reduzida somente ao seu pensamento ético. Para além das caricaturas, o estoicismo é uma filosofia que se caracteriza pelo seu sistema, em que a física, a ética e a lógica são indivisíveis. E é assim que Diógenes Laércio em seu livro Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, em que se refere ao sistema da filosofia estóica como um corpo único, em que cada parte depende da outra de forma inseparável:

Eles [os estóicos] dizem que a filosofia é como um animal, a lógica corresponde aos ossos e tendões, a ética seria os músculos, e a física seria a alma. De forma similar, eles a comparam com o ovo: a casca é a lógica, a clara é a ética, e a gema no centro é a física. Ou, ainda, comparam com um pomar: a lógica seria a vegetação circundante, a ética seria o fruto, a física seria o solo ou a árvore (Diogenes Laertius, Lives and Opinions of Eminent Philosophers, livro VII 40 1925, tradução livre do inglês).

Porém, com essa divisão da filosofia em três partes, os filósofos da stoá não chegam a hierarquizar as partes, mas ao contrário, elas possuem igual importância no conjunto do sistema. A Física estóica trata das especulações sobre a Natureza do Cosmos; a Lógica trata do conhecimento e da verdade a partir da Natureza e a ética trata do viver conforma a Natureza. O que une as três partes do sistema estoico de pensamento é o conceito de Lógos, ou a razão imanente da Natureza. Dessa forma, Lógos é o princípio de verdade na lógica, o princípio criativo no cosmo ou na física, e na ética, é o princípio normativo.

O sentido que mais se aproxima do Lógos estóico tem um sentido semelhante ao que Heráclito propõe: o Lógos está presente tanto no cosmos quanto no homem. O Lógos é, então, a forma de compreender a existência da vida humana, mas também é a forma de compreender o devir cósmico. Destarte, o sentido de Lógos vai além da razão puramente pensante e discursiva, atuando num sentido mais amplo: pois é o Lógos que dá forma, cria a si mesma e ordena o Todo do universo, de forma racional e rigorosa e que fixa em cada criatura a sua destinação, é princípio imanente e ordenador da Natureza. Segundo Marco Aurélio, é a razão que rege a Substância Universal, que “tudo produz e tudo completa”, e, com efeito, sabe como o Todo “está disposto, o que com ele faz e com que matéria” o faz (Meditações, livro VI, I e V). O Lógos e a Natureza são a mesma coisa, isso ficara mais claro adiante, o Todo em sua totalidade representa a realidade total e compreende o Todo, que representa a realidade do mundo, em que compreende os corpos e o vazio. É importante dar ênfase, sem cair em termos técnicos, que o Todo em sua totalidade que representa a realidade total é a noção de tó pan e a noção do Todo em que compreende o mundo e o vazio é a noção de tó hólon, o que nos importa é a concepção de tó pan, do Todo em sua totalidade absoluta.

O termo Lógos é significativo em seu emprego, pois expressa um princípio de imanência e racionalidade. Ao invés dos estoicos utilizarem o termo nous, ou seja, um termo que signifique pensamento e inteligência, eles optam por manter o sentido heraclitiano de Lógos. O termo Lógos, como já indicado, possui um significado polissêmico, além de indicar um princípio de verdade, criador e normativo, pode vir a indicar, dentro da tripartição da filosofia, o “objetivo e o subjetivo, o antropológico e o cosmológico, o gnosiológico e o ontológico”. Assim, no estoicismo o termo Lógos possui um sentido diferente do comumente usado na filosofia antiga, em especial aos sofistas que entendem que o lógos diz somente ao discurso; ou ainda a Platão que entende o lógos como parte superior da alma e também a parte racional, que sobrevive após da morte; e a Aristóteles, que entende o lógos como conhecimento universal que é o objetivo da ciência.

O estoicismo conceitua o Ser como um corpo, ou seja, tudo que existe é aquilo é capaz de agir e de sofrer uma ação de outro corpo, isto é, tudo que é e que existe possui uma existência corpórea, ou seja, em termos técnicos, é uma ontologia corporealista. Isso implica em que se o mundo existe ele é, consequentemente, em sua constituição, um corpo único, uma totalidade, e o que os une é própria Natureza, logo, ela [a Natureza] se apresenta como a lei que regula os fenômenos, como a lei ordenadora e como a alma que vivifica os corpos (pneuma), ou seja, o Lógos é inerente e inseparável na Natureza, portanto, o Lógos é imanente à Natureza.

O estoicismo mantém a dualidade causal do hilemofismo, em outras palavras, tudo é causa e matéria. O estoicismo aceita somente a noção de causa eficiente. A causa imprime uma forma à matéria (hýle). Nos termos estoicos, o Lógos ou a racionalidade imanente imprime uma forma aos corpos materiais, ou à matéria. Se o mundo é um corpo, e corpo é matéria que possui uma forma, o mundo (to hólon) recebe a forma pela razão divina, ou pela Natureza, pois “a razão (Lógos) que rege sabe como está disposta, o que faz e com que matéria” (Meditações, Livro VI, 5). Com efeito:

A substância do universo (to hólon) é dócil e maleável; a razão (Lógos) que a rege não tem em si nenhum motivo de fazer o mal; não tem maldade, não faz mal nenhum e dela nada recebe nenhum dano. Tudo se produz e completa de acordo com ela. Assim, a Física estoica elabora uma visão dinâmica, orgânica e racional da Natureza, ela é governada e ordenada de maneira inteligível e providencial, ou seja, a Providência rege de forma que tudo ocorra da melhor maneira possível. (Marco Aurélio, Meditações, Livro VI, 1).

A Natureza apresenta uma visão divina, pois, como o Demiurgo platônico, é o que dá forma a matéria, e como o Lógos e a Natureza são a mesma coisa, o Lógos é visto como algo divino e da mesma forma, a Natureza é relacionada aos deuses. Dessa forma, a Natureza é o princípio ativo, é causa a imanente e necessária, que penetra toda a matéria e todos os corpos. Esse princípio ativo possui vários nomes: mente ou alma, natureza e principalmente, é referido como o próprio Deus, com efeito:

Segundo os estoicos, os princípios do universo são dois, o ativo e o passivo. O principio passivo é substância sem qualidade, a matéria; o princípio ativo é a razão na matéria, isto é, deus. E deus, que é eterno, é demiurgo criador de todas as coisas no processo da matéria. (Diógenes Laércio, VIII, 134).

Como a Natureza e o Todo representam um corpo só, a Natureza é a própria totalidade em absoluto (tó pan), pois o mundo é “um vivente único, composto de uma única substância e de uma única alma” (Marco Aurélio, IV, 40). Dessa forma, a ordem que governa o Todo é a mesma ordem que regula a Natureza, pois “tudo de cumpre segundo a Natureza do universo” (Marco Aurélio, VI, 9). Portanto, sendo a Natureza igual ao Todo, e a Ordem do Todo é o próprio Lógos imanente, e esse Lógos é a inerente ao Todo, a Natureza e o Todo possuem a mesma essência, que é a própria razão imanente ordenadora do Cosmos. E se o Lógos é o principio racional imanente, criador, ordenador e necessário, logo, o Lógos é o próprio Deus, e sendo a Natureza o próprio Lógos, então a Natureza é o próprio Deus, assim, Deus, ou seja, a Natureza. Deus é o principio ativo, imanente, necessário, criador e ordenador. Está presente no Todo e é o próprio Todo em absoluto, é “todo o Cosmo e o Céu”. E ainda:

Cosmo tem, para os estoicos, um tríplice significado: primeiro, Deus mesmo, cuja qualidade é idêntica à de toda substância do universo; ele é por isso, incorruptível e ingênito, criador da ordem universal, que, em determinados períodos de tempo, absorve em si toda a substância do universo e, por sua vez, a gera de si. (Diógenes Laércio, VII, 148).

Dessa forma, o estoicismo é panteísta, pois acredita que Deus está no Todo, no to pan, na Natureza, no homem e nos corpos do Universo. O estoicismo é a primeira filosofia que sistematiza essa noção panteísta de Deus. Essa concepção reaparece na modernidade sobre o nome de Baruch de Spinoza. O panteísmo estoico pode ser lido como um ateísmo, pois nega uma divindade transcendente e também como um teísmo, pois a divindade é um pressuposto necessário ao sistema filósofico.
Concluo assim, indicando que essa concepção da Natureza e de Deus tem implicações na ética, pois implica na existência do ser humano no mundo. Por que a Natureza (phýsis) representa o seu sentido além do estritamente cosmológico, representa também a própria conotação da essência (phýseos) dos corpos no mundo, além da própria essência do Universo. Já que a essência, a natureza do Universo, é o Lógos imanente, a essência do humano é a também o lógos, ou seja, a razão e a capacidade de usa-la, e compreendo a nossa própria natureza é possível compreender a natureza do Todo, em outras palavras, compreendo o uso da razão, do nosso lógos, é possível entender como o Lógos, ou a razão imanente, opera a Natureza. Segundo Marco Aurélio, que admite essa importante conotação entre a Natureza e a essência do ser humano e suas implicações éticas, em suas palavras:

Deves sempre lembrar qual a Natureza do Universo, qual a minha, qual a relação entre esta e aquela, qual parte sou de qual universo e que ninguém e impede de fazer e dizer o que é consequência da natureza de que és parte. (Meditações, Livro II, 9, 1973).


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